por Eduardo Carli para A Casa de Vidro.com
O CALCANHAR DE AQUILES DO ANTROPOCENO
A controversa proposta de que o planeta teria entrado em uma nova época geológica por efeito da agência humana possui um calcanhar de Aquiles, um ponto crucial de vulnerabilidade à crítica e à objeção. É no excesso de generalidade que reside o cerne do problema: afirma-se que uma entidade chamada Humanidade é a culpada por sepultar o Holoceno, e denega-se ou ofusca-se o fato de que não há nada de homogêneo nesta tal de Humanidade transformada em força geológica.
Muito pelo contrário, esta lendária Humanidade não é todinha responsável pelas emissões de gases de Efeito Estufa e pelos devastadores desmatamentos, represamentos e holocaustos animais que nos trouxeram à atual situação de planeta torrado. O Capitalismo Canibal de Nancy Fraser é uma leitura eletrizante pois nele pulsa esta questão que dá início a este jornada intelectual: “ESTAMOS FRITOS?” Senti grande estímulo para em poucos dias devorar o livro de orelha a orelha quando a autora disse, no prefácio, que este estamos fritos? é uma questão existencial urgente (eu concordo plenamente, com razão e sentimento…).
Para escapar da armadilha tanto do Antropocentrismo quanto da ilusão de uma Humanidade una/holística, é preciso estudar o que de melhor se faz nas Ciências Sociais e Humanas para enxergar, no concreto e no específico, que os humanos existem profundamente divididos. Apartheid não é nenhuma metáfora – é fato do mundo (presente) e não “apenas” história (pretérita) – os Palestinos sob ocupação militar sionista que o digam…
“Humanidade”: trata-se de algo marcado fortemente por assimetrias extremas, discrepâncias internas, cisões e fraturas. Entre os humanos há diferenças tão cruciais quanto multiformes. Atribuir a todos os humanos a responsabilidade/culpa pela aniquilação das condições planetárias vigentes nos últimos 12.000 anos (ou seja, todo mundo fez o Holoceno entrar em pane e o tal Antropoceno caótico começar…) é ignorar o peso diferencial de diferentes sociedades na produção de tal situação, ocultando, por ex., o fato de que países ricos fuderam muito mais com o clima que os países pobres.
Ademais, como argumentará Nancy Fraser, ainda que não faça proselitismo em prol do termo Capitaloceno (cada vez mais em voga), é preciso destacar o elemento do capitalismo criminoso-canibal na gestação das bestas-fera chamadas Aquecimento Global e Sexta Extinção, as autênticas marcas de nossa época: quem nos trouxe a isto foram muito mais as megacorporações transnacionais dos que os povos indígenas; foram muito mais os consumidores de sociedades “afluentes” do assim apelidado Primeiro Mundo do que as massas depauperadas e expropriadas do “Sul global”.
A retórica que toma a reunião de todos os humanos como uma mega-entidade que destravou o Antropoceno prefere nem mencionar a palavra capitalismo; e o vício desta omissão acaba por conspurcar todo o seu argumento. Em Capitalismo Canibal, Fraser soube tecer excelentes considerações sobre o apartheid (em sentido ampliado… o efeito de apartamento, a alienação objetiva e concreta) que o capitalismo impõe entre os humanos sob seu domínio, por um lado, a natureza de que somos parte e integramos, de outro:
“O capitalismo separou de forma brutal os seres humanos dos ritmos sazonais naturais, recrutando-os à produção industrial, movida a combustíveis fósseis, e à agricultura com fins lucrativos, tonificada com agrotóxicos. Introduzindo o que Marx chamou de ruptura metabólica, inaugurou-se o que foi apelidado de forma enganosa de Antropoceno: uma era geológica inédita em que a ‘atividade humana’ – na verdade, o capital – está canibalizando o planeta.” (FRASER, Nancy: São Paulo, Autonomia Literária, 2024, p. 33)
Em minha avaliação, um dos mais importantes argumentos de Fraser é aquele que aponta o capitalismo como “o principal fator sócio-histórico que impulsiona o aquecimento global” com base em “argumento empírico, uma afirmação de causa e efeito”. Capitalismo: causa; catástrofe climática planetária: efeito. Isto conduz a autora a criticar o vocabulário dos que falam em mudanças climáticas antropogênicas, pois aí a culpa é atribuída à humanidade em geral, quando deveríamos ser mais críticos, menos ingênuos, para perceber que a atribuição de culpa deve ser feita aos autênticos ecocidas, “a classe de empresários que, movidos pelo lucro, arquitetaram o sistema de produção e transporte por combustíveis fósseis liberando uma enxurrada de gases de efeito estufa na atmosfera” (op cit, 2024, p. 126).
A besta-fera que ela apelidou de Capitalismo Canibal, com seu apetite voraz, come tudo em seu caminho, até sua própria cauda. Surge daí o conceito central de Nancy Fraser neste livro em matéria imagética, simbólica, icônica: o Ouroboros. O capitalismo está em estágio de auto-canibalismo. Está devorando suas próprias condições de sobrevida. O que está conduzindo o planeta a estar inabitável não é um Antropoceno causado por todos nós, mas uma Catástrofe global de “feitura” pelo capitalismo em seu estágio atual – neoliberal, financeirizado e loucamente aceleracionista em sua queima de combustíveis fósseis e em seu extrativismo-exterminismo contra os territórios das populações racializadas e construídas como subhumanas.
“Desassociando aquelas pessoas meramente exploráveis das absolutamente expropriáveis, [a sociedade capitalista] racializa este último grupo como se sua violação fosse inerente. O resultado disso é a consolidação de uma variedade de injustiças, que incluem a opressão racial, o imperialismo (velho e novo), a despossessão indígena e o genocídio. Por fim, as sociedades capitalistas instituem uma divisão profunda entre seres humanos e a natureza não humana, que deixam de pertencer ao mesmo universo ontológico. Reduzida a fonte e escoadouro, a natureza não humana fica aberta à brutalidade do extrativismo e da instrumentalização. Se essa não é uma injustiça contra a ‘natureza’ (ou contra os animais não humanos), é, no mínimo, uma injustiça contra as gerações atuais e futuras de seres humanos a quem é deixado um planeta cada vez mais inabitável.” (FRASER, 2024, pg 213)
Para síntese do argumento, retomo a imagem do início: o calcanhar de Aquiles da proposta de que entramos no Antropoceno, o ponto onde o argumento perde força, é na atribuição de responsabilidade generalizada ao conjunto dos humanos, lançando na indistinção o que deveria ser compreendido clara e distintamente: a crise ecológica não é obra de todos os humanos. Certamente não é obra dos povos que vivem em sociedades não-capitalistas.
O que também significa que não estaríamos em meio a uma catástrofe desta magnitude caso não tivesse a sociedade capitalista se espraiado como um vírus de alto contágio pelo mundo afora em seu processo imperial de “globalização”. Fraser expõe muito bem o quanto o capitalismo sempre dependeu da exploração de seus cidadãos, súditos do salário, quase-escravos do patronato, e conjuntamente da expropriação cometida contra os povos (autóctones, indígenas) invadidos, conquistados, espoliados, roubados de suas riquezas e de seu direito de auto-determinação.
De acordo com a autora, o capitalismo canibal – ou seja, a sociedade capitalista contemporânea – tem uma “tendência inerente à crise ecológica”; o capeta não seria tão competente quanto é o capitalismo em lançar as chamas infernais sobre um planeta frito no caldeirão das maiores temperaturas dos últimos 15.000 anos… O Holoceno foi assassinado a olhos vistos, mas o réu Humanidade é um fake-réu diante da criminalidade muito mais extensa e intensa da classe capitalista-ecocida que
“evita pagar qualquer coisa perto dos verdadeiros custos de reposição dos insumos que toma da natureza não humana, o capital esgota o solo, polui os oceanos, inunda sumidouros de carbono e sobrecarrega a capacidade de armazenamento de carbono do planeta. Servindo-se da riqueza natural e, ao mesmo tempo, denegando seus custos de reparo e reposição, periodicamente desestabiliza a interação metabólica entre os componentes humanos e não humanos da natureza. Somos atingidos pelas consequências hoje. Afinal, o que ameaça incinerar o planeta não é a ‘Humanidade’, mas, sim, o capitalismo.” FRASER, p. 215
VÍDEOS
CRÍTICAS E OBJEÇÕES
Por mais sagaz e provocativo que seja, o livro de Fraser pareceu-me decepcionante em alguns aspectos, o principal deles sendo a figura do Ouroboros. O que ocorre no livro é uma recorrente evocação do mesmo (pgs. 49, 95, 132, 136, 178, 216), e sempre com o mesmo sentido. Ora, parece-me que faltou à autora um aprofundamento sobre este símbolo, pois longe de ter o sentido unívoco de uma auto-devoração que conduz à auto-destruição, ou seja, um autofagia de uma entidade que se auto-aniquila, que devora a si mesma rumo ao nada, o Ouroboros é também símbolo e expressão do eterno retorno, como explorado por Mircea Eliade e antes por Nietzsche (trabalhei este aspecto no texto Preparativos Para o Apocalipse).
Fraser limita-se a apenas um sentido possível para o Ouroboros: “Ao não conseguir repor ou reparar seus terrenos ocultos, o capital devora de forma persistente os próprios apoios de que depende”, escreve a autora, “como uma serpente que come a própria cauda, canibaliza suas próprias condições de possibilidade.” (p. 49)
Vejam que o trecho, por mais lindo e instigante que seja, evoca o Ouroboros apenas como figura da auto-destruição. Não ocorre por aqui o Ouroboros que representa uma certa dinâmica do tempo profundo em que o Todo móvel sempre retorna, num balé eterno da Diferença. Para Fraser, a sociedade capitalista estaria comendo canibalisticamente aquilo que, por detrás das cortinas, nos “terrenos ocultos” (da reprodução social não-remunerada, da ecologia e dos “serviços ecossistêmicos”, da política pública…), são suas própria condições concretas de existir: nada de capitalismo sem mulheres não-remuneradas por trabalho doméstico e de cuidado; nada de capitalismo sem exploração da mais-valia dos operários e sem o uso e abuso da posse de terra diante de camponeses expropriados; nada de capitalismo sem o Estado, o poder público, sobretudo militar, policial, carcerário e jurídico, para garantir a Lei e a Ordem; nada de capitalismo sem a Natureza (extra-humana) de quem se extrai num frenesi expropriativo as riquezas ditas gratuitas… Rumo, aí sim, depois de tanto carvão e petróleo incinerado, ao desastre da habitalidade do planeta.
“Destruindo suas próprias condições de possibilidade, a dinâmica de acumulação do capital mimetiza o Ouroboros e come a própria cauda… Ao necessitar da natureza e depreciá-la ao mesmo tempo, o capitalismo é também um canibal que devora seus próprios órgãos vitais. Assim como o Ouroboros, ele devora a própria cauda… O capital denega os custos ecológicos que gera, presumindo, com efeito, que a natureza pode se repor de forma autônoma e infinita. Também nestas circunstâncias a serpente tende a devorar a própria cauda, canibalizando as condições naturais de que depende.” (FRASER, 2024, pgs. 95, 132, 178)
Não me entendam mal: o Ouroboros é mesmo uma excelente ferramenta semiótica, um símbolo poderoso, e minha crítica não incide sobre a escolha da Nancy de utilizá-lo com insistência; o que critico é a unilateralidade de sentido, uma certa falta de problematização de outras maneiras de compreender o que significa o tal do Ouroboros. Afinal a serpente deste símbolo não deve ser construída como malévola, demoníaca, desencaminhante das boas almas pias, expressando auto-destruição e irracionalidade auto-consumidora; a serpente do Ouroboros sendo também o forte símbolo da benéfica metamorfose vital, que troca de pele para avançar rumo a uma existência renovada, de que Nietzsche, Raul Seixas e David Bowie foram alguns dos poetas-profetas, evocando uma temporalidade cósmica, dos aeóns ou dos kalpas, onde a mudança é eterna e a transformação é a única constante universal – uma dimensão completamente ausente da reflexão Fraseriana que, assim, tornou unívoco um Ouroboros que é muito mais complexo.
Jessie Kindig, editora da Verso Books, sintetiza bem o uso que Fraser faz do Ouroboros em seu texto The Whole Snake, que elogia a autora por nos fazer enxergar “a cobra inteira” do capitalismo canibal, mapeando os meios para matá-la de fome:
“If you can see the entire snake, she says—well, it means we know how to kill it. More than understanding why crisis seems to follow immediately upon crisis these days, Cannibal Capitalism argues that we can fight capitalism by starving it to death. That is: socialists and activists can deny the snake the right to eat democracy, kill the planet, imprison and harm us, destroy our ability to care for one another. Socialism: it’s not just a buzzword, Nancy writes, nor a fad, nor a naive hope. It’s what we have to have to keep the snake from chomping all the way down its tail until it eats its own mouth, our world, and all of us.” (KINDIG, Jessie. In: Verso Books)
Outro incômodo que também sinto está em que Fraser peca um pouco por desmesurado otimismo: é como se a sociedade capitalista estivesse destinada a se auto-destruir apenas por seguir a sua própria lógica. Mas e se a sociedade capitalista desse um jeito de ficar em uma espécie de loop retornante e, ao invés de “devorar-se” até a dissolução, sendo gloriosamente superada pelo ecosocialismo, acabe por demorar-se em devorar-se e devorar-nos até que a distopia da extinção da espécie se faça fato?
Em outros termos: o Ouroboros de Fraser é um tanto otimista e parece expressar um leap of faith rumo à esperança de que a autofagia do capitalismo canibal representa uma dissolução rumo à nadificação; esta serpente, esta besta-fera, pode ser mesmo como a figura que serra o galho onde está sentado, e cai para sua morte, deixando a árvore viva para os futuros socialistas, que farão melhor uso de galhos e frutos. Porém, a hipótese mais pessimista é ocultada, e o potencial de fato apocalíptico do capitalismo terminal (e não apenas “tardio”) fica sem enfrentamento, sem escrutínio crítico por parte da autora, a não ser muito episódica e desfocadamente. Ou seja, faltou a ela injetar mais especulação distópica em seu caldo e sondar a terrível resiliência e plasticidade deste capitalismo que nos dana mas não arrefece.
Enumero outras três falhas ou insuficiências que tornaram Capitalismo Canibal, a meu gosto, uma obra que é menos eficaz do que sua autora parece crer para a consecução da meta de superar o canibalismo capitalista:
1) a questão revolução ou eleição? é crucial, mas a autora se omite de responder, nem mesmo julgando relevante, em seu capítulo “o que é o socialismo?”, discutir o caminho – revolucionário ou apenas reformista? aceitando a violência armada (e até que ponto?), ou não (aferrando-se ao pacifismo?); acabamos com um bom mapa do que seria a sociedade socialista vindoura, ciosa do Cuidado, anti-imperialista, dedicada ao fomento e a vitalidade com que deve elege como prioridades a ecologia planetária, o bom-trato com o trabalho não-remunerado da reprodução social, a revitalização dos poderes públicos que atuam em prol do bem comum, e o apoio resoluto aos povos em luta por descolonização e auto-libertação etc., mas falhando totalmente em debater estratégias e táticas, o como fazer deste altermundo socialista por ela propugnado. Talvez a única ocorrência, rápida e sem aprofundamentos, do tema da revolução ocorre quando ela evoca o freio de emergência da locomotiva da história à qual alude Benjamin em Sobre o Conceito de História (p. 203), porém sem propor nenhum debate acerca de tão instigante ideia.
2) Fraser praticamente ignora o campo das artes e da produção cultural, e num livro como Capitalismo Canibal perde a chance de fazer filosofia política alinhada ao campo fílmico, por exemplo – sua única menção a uma obra da 7ª Arte é ao O Mágico de Oz (p. 199), e ela passa batido não só pelas distopias comor Soylent Green, Snowpiercer, Mad Max e por todo o campo dos zumbis, como também ignora completamente a nova onda de cinema canibal que se manifesta em Raw de Ducorneau, Fresh de Mimi Cave e Bones and All de Luca Guadagnino, acabando sem tecer nenhuma ponte entre a sociedade canibalizante que descreve e as figurações desta em obras-primas do cinema e em blockbusters impactantes da sociedade do espetáculo.
SAIBA MAIS: https://www.theguardian.com/film/2022/nov/23/bones-and-all-movies-cannibals
3) Pouco atenta à psicologia social, Fraser reflete pouco sobre aquilo que Anselm Jappe chama de forma-sujeito da sociedade autofágica; parece-me estranho que uma autora tão bem informada, leitora voraz, ignora a oportunidade de interlocução com Jappe, que pesquisa tema tão parecido, mas com maior penetração psicológica, mais argúcia na decifração das subjetividades do capitalismo canibal; em suma: Fraser fala muito das condições de fundo para a economia capitalista, ou seja, aquilo que está atrás da cortina, mas parece não estar disposta a fazer uma jornada para dentro dos sujeitos para compreender as subjetividades e as relações capitalisto-canibais. Outra estranha ausência de interlocução é aquela, que tanto poderia beneficar as reflexões de Fraser, de Silvia Federici acerca do trabalho não-remunerado do cuidado.
Tudo considerado, no entanto, considero a leitura deste instigante Capitalismo Canibal muito recomendável a todos que querem a chama viva do senso crítico e da ação transformado ardendo em prol de um mundo habitável, com água potável e ar respirável e bem-viver autêntico para todos, e não apenas para os privilegiados poucos; o business as usual é a maior das loucuras, a continuidade da normalidade é o que conduz à disrupção completa de tudo o que tínhamos por normal. Uma boa síntese da obra está na afirmação de que
“o capital apresenta uma tendência intrínseca de corroer, destruir e exaurir – mas, de qualquer modo, desestabilizar – suas próprias pressuposições. Assim como o Ouroboros, devora a própria cauda. A autocanibalização também faz parte do que há de errado na sociedade capitalista e do que o socialismo precisa superar.” (p. 216)
Leia mais artigos de Eduardo Carli no site d’A Casa de Vidro (2010 – 2024):
LEIA TAMBÉM:
OUTRAS PALAVRAS – Para devorar o capitalismo canibal
https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/para-devorar-o-capitaliso-canibal/
RESILIENCE.ORG – Resisting Cannibal Capitalism
https://www.resilience.org/stories/2023-05-11/resisting-cannibal-capitalism/
VERSO BOOKS – The Whole Snake
https://www.versobooks.com/en-gb/blogs/news/5401-the-whole-snake
Publicado em: 24/07/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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